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04/14/2023
Sabbat Beltane

TEXTO POR:

Mirella Faur

ESCRITO ORIGINALMENTE EM: 14/04/2010

Os povos antigos consideravam a viagem circular da Terra ao redor do Sol uma roda –chamada Roda do Ano – que representava a eterna dança da natureza no fluir dos ciclos naturais e humanos de: nascimento, desabrochar e crescimento, florescimento, maturidade e frutificação, envelhecimento, decadência e morte, seguida de renascimento e renovação. Há pelo menos doze mil anos, em várias culturas ao redor do mundo, eram celebradas as transformações da natureza ao redor da Roda do Ano com festivais, sejam solares (solstícios e equinócios), sejam de fogo (que marcavam os pontos intermediários entre os festivais solares) e denominados pelos povos celtas de Sabbats. Seguiam-se as datas do calendário agrícola – plantios, colheita, a condução para os pastos e o abate dos animais – marcados por encontros comunitários, que aos poucos assumiram características festivas e religiosas, consagrando assim a relação e conexão dos seres humanos com as forças cósmicas, solares e telúricas.

As celebrações dos Sabbats têm múltiplos e complexos significados, dos quais o maior é a reverência das polaridades: Deus/Deusa, céu/Terra, homem/mulher, vida/morte, transitório/permanente, comemorando a passagem do tempo e os ciclos das estações. Na eterna dança da natureza o Deus nasce, morre e renasce, enquanto a Deusa passa da infância para maturidade, maternidade, envelhecimento, transformação e renovação, sem jamais morrer, pois é Ela que gera a vida, como é a própria vida. A Deusa é a Terra que contém em si o Deus, o princípio dinâmico e criativo que resplandece, definha e ressurge como Seu filho e consorte. A sua união simboliza o hieros gamos, o casamento sagrado e a polaridade da vida e morte, que é representada pelos Sabbats.

Na Roda do Ano, Beltane, e seu oposto Samhain, eram os maiores festivais da tradição celta, marcando o início do verão e do inverno, as duas metades do seu ano calendarístico. Beltane representava o casamento sagrado do Deus e da Deusa, a união do céu com a Terra, que espelhava a exuberância e a vitalidade da natureza e visava o aumento da produtividade da terra e da fertilidade em todos os reinos. Seu nome foi inspirado nas fogueiras que eram acesas nesta data em todas as colinas da Irlanda e Grã-Bretanha – chamadas balefires – e possivelmente era dedicado a um ancestral deus irlandês do fogo, Belenus ou Beltene. Beltane era originariamente um festival pastoral, marcando a ida dos rebanhos de gado para os pastos, ao qual foram acrescentadas com o passar do tempo, rodas de danças ao redor de um mastro e rituais de purificação. As pessoas pulavam sobre as fogueiras acesas pelos sacerdotes druidas buscando purificação, atrair a sorte e a proteção; depois os casais iam para os bosques celebrarem sua união. Havia encenações de combates ritualísticos entre representantes dos poderes da escuridão e da luz, e sacrifícios, no início autênticos, depois para mostrar a morte do velho rei – ou da anciã – do inverno e o triunfo dos jovens reis do verão. No dia seguinte os homens traziam galhos verdes dos bosques e os colocavam na frente das casas para atrair a proteção. O mastro – simbolizando a nova vida – era escolhido entre as árvores mais vigorosas da floresta e levado em procissão pelas ruas por rapazes com guirlandas de folhagens e moças enfeitadas com flores.

Acreditava-se que espíritos malévolos e bruxas estavam soltos nesta noite, crença que deu origem a várias superstições e encantamentos de proteção como usar sinos, evitar andar nos bosques ao anoitecer, não se deixar iludir por aparições de fadas, entre tantas outras. A igreja cristã assumiu a “proteção” do povo contra as bruxas, primeiro queimando-as nas fogueiras da Inquisição e depois conduzindo missas e procissões para espantá-las das moradas e dos campos, onde eram os próprios padres que acendiam as fogueiras dedicadas a alguns santos milagreiros. Por não conseguir erradicar as memórias das antigas celebrações pagãs, a igreja católica declarou o mês de maio consagrado à Maria e às noivas, em lugar de junho dedicado a Juno, a padroeira romana das uniões e das mulheres.

Existiam nesta data celebrações semelhantes em outras culturas, como os festejos romanos de Florália e Bacanália, com alegres encontros entre rapazes e moças enfeitados com guirlandas de flores, atributos de Flora, a deusa da fertilidade e da concepção e de Maia, que regia a energia vital e a sexualidade. No Tirol, até hoje, continuam as festividades de Florália da mesma forma como eram feitas há milhares de anos atrás com alegres danças, canções e brindes de um vinho feito de flores, que tinham sido colhidas no dia primeiro de Maio do ano anterior. Todo o vinho preparado devia ser consumido nas fogueiras acesas na noite de 30 de abril e novas flores eram colhidas na madrugada seguinte. As casas eram enfeitadas  com flores, que também eram usadas em profusão em guirlandas e coroas para as moças; os rapazes iam colher nas colinas íngremes dos Alpes as delicadas flores de edelweiss, ofertando-as para suas namoradas em sinal de compromisso, selado na frente das fogueiras.

Na Idade Média era costume as damas e os cavalheiros passearem nos bosques liderados pela “Rainha de Maio”, a mais bonita moça coroada com flores, cavalgando uma égua branca junto com seu parceiro, o “Rei de Maio”, montado em um reluzente corcel negro. Eles personificavam “A Senhora e o Senhor da Natureza”, cujas bênçãos traziam a fertilização mágica: humana e telúrica, animal e vegetal.

Na Grécia existia o festival do deus Pan, o equivalente do Deus Cornífero do Oeste da Europa (chamado Cernunnos pelos celtas). Ele era o “Senhor da Caça”, o deus ancestral da fertilidade, consorte da Grande Mãe, cujas representações foram encontradas nas cavernas pré-históricas, nas gravações do famoso caldeirão de Gundestrupp e em diversos mitos. Com o passar do tempo os festivais florais e as bênçãos da terra, das fontes e das mulheres transformaram-se em orgias, a licenciosidade e a liberdade sexual passando a serem atributos específicos destes encontros profanos.

Na antiga Alemanha celebrava-se a Noite de Walpurgis, a última noite da metade escura do ano iniciada em Disablot, a festa dos ancestrais (equivalente ao Sabbat Samhain) e oposta na Roda do Ano. No antigo calendário pagão nórdico, nas nove noites que precediam a esta data, comemorava-se a auto-imolação do deus Odin para alcançar a sabedoria das runas. Na última noite eram acesas fogueiras para as purificações e proteção contra os espíritos maléficos, os trolls e os fantasmas que tinham livre trânsito pela terra nesta noite, considerada a festa das bruxas e o final da “Caça Selvagem” conduzida pelo deus Odin. No dia seguinte comemorava-se Majfest, a “Festa de Maio”, a celebração do dom da vida recebido das divindades com alegres procissões, canções e danças. Era evidente o contraste entre a noite povoada de perigos, os encantamentos ao redor das fogueiras, e os festejos de Maio, no dia seguinte – uma data repleta de luz, alegria e comemorada por passeios de casais nos bosques. Escolhiam-se o “Rei e a Rainha de Maio” entre os casais mais bonitos ou atuantes na comunidade que tinham suas mãos entrelaçadas com uma trança de fitas ou flores. Este antigo costume deu origem ao ritual de Handfasting, a união ritualística de casais encontrado nas celebrações dos grupos neo-pagãos, eco-feministas e Wicca.

Na Escandinávia as fogueiras eram dedicadas ao deus solar Baldur e deviam ser acesas pelo método antigo de criar a centelha pelo atrito de dois pedaços de madeira por um casal, simbolizando a união da Deusa com o Deus. Os noruegueses acreditavam que deviam manter as fogueiras acesas durante toda a noite, enquanto na Rússia recomendava-se que as pessoas deviam passar a noite em vigília e ofertar ervas aromáticas ao fogo para sua purificação e cura. Na Escócia acendiam-se as fogueiras pelo giro de uma roda, sendo este o único fogo permitido neste dia, para fins ritualísticos ou domésticos, enquanto na Irlanda as lareiras eram acesas com as brasas das fogueiras de Beltane levando para as casas um pedaço de brasa e assim atraindo as bênçãos do verão e a boa sorte. Nos países eslavos jovens coletavam na madrugada do dia os galhos para acender o fogo, enquanto as mulheres levavam suas vassouras velhas para serem jogadas nas chamas, representando assim a purificação das casas e das pessoas após os meses de inverno.

Na tradição celta os “Fogos de Beltane” honravam o desabrochar e o desenvolvimento da vegetação, as promessas da abundância da terra fertilizada pelos raios solares (simbolizados pelas chamas), os instintos de acasalamento dos animais e os impulsos amorosos humanos. Eles eram comemorados com danças, música e a encenação do casamento sagrado da Deusa da Terra com o Deus da Vegetação, representados pelos seus sacerdotes. As cinzas das fogueiras eram depois espalhadas nos campos para atrair proteção e abundância das colheitas, bem como usadas em talismãs de fertilidade pelas mulheres estéreis. Os animais eram passados entre duas fogueiras para a sua purificação e proteção contra pragas, o que também era feito com crianças, pessoas doentes ou idosas para afastar azares e doenças.

O principal símbolo de Beltane é o “Mastro de Maio”, cujo costume ainda continua em vigor em muitas regiões rurais de Irlanda, Inglaterra, Escandinávia, Alemanha e América do Norte. Antigamente o mastro era feito do pinheiro usado no Sabbat Yule, no solstício de inverno, descartando seus galhos e decorando-o com fitas vermelhas e brancas, que simbolizavam a cor da Deusa (vermelho para os mistérios do sangue) e de Deus (branco, para o esperma). O mastro era a reprodução da Árvore do Mundo, as raízes fincadas no mundo subterrâneo e os galhos elevados para o céu, o falo divino e celeste que proporcionava o renascimento do espírito através da sua condução para o útero telúrico e materno representado pelo orifício aberto na terra. Como autêntico símbolo fálico, o mastro impregna e fertiliza a terra (que passa do estado de virgem para a maternidade), momento mágico cuja força é tecida pelo entrelaçamento das fitas na dança ao seu redor. Os participantes seguram a fita na cor que representa o sexo feminino ou masculino e entrelaçam cores e energias criando a união das polaridades que irá gerar a energia do próximo ciclo, da natureza e das suas próprias vidas. Um ritmo típico da Inglaterra era Sarasponda que imitava o som de uma roda de fiar e a dança reproduzia o giro da roda solar. Uma dança típica escocesa era realizada por cima de duas espadas dentro de um círculo (representando a roda solar), as espadas simbolizando as polaridades que eram unidas com o movimento da dança. As famosas Morris Dances eram feitas por dançarinos com sinos presos nos tornozelos, os sinos sendo um antigo talismã de proteção contra os espíritos maléficos que perambulavam na noite de Beltane. Até recentemente eram erguidos mastros de maio nos sítios sagrados da Inglaterra, a antiga tradição sendo preservada pelos grupos de danças folclóricas e pelos círculos cerimoniais e ritualísticos atuais. Na Ilha de Man ainda estão sendo encenadas as antigas cerimônias e combates rituais entre o verão e inverno, o verão sendo o vencedor. Na Irlanda e Inglaterra as casas são limpas e depois abençoadas, as moças costumam usar oráculos e presságios para saber sobre seus futuros maridos. Na tradição africana ainda encontrada nos Estados Unidos primeiro de maio é um dia favorável para encantamentos de amor e divinações.

Como o mastro representa o princípio masculino do casamento sagrado entre céu e Terra, espírito e matéria, ele deve ser tratado com muito respeito e reverência. Uma vez cortado e removidos os seus galhos, ele devia ser carregado em uma procissão silenciosa pelos homens solteiros. Depois se abria um orifício na terra para colocá-lo com muito cuidado, ofertando em seguida água e sal, enquanto as mulheres reunidas em círculo entoavam cânticos e orações para que a Mãe Terra recebesse o seu consorte. O mastro poderia ser ungido com um óleo aromático ou azeite com essências de mirra e artemísia, riscando alguns símbolos sagrados ou rúnicos sobre ele para despertar e abençoar o seu poder viril. Lentamente, o mastro era erguido em silêncio, tendo sido fixado previamente no seu topo um círculo de arame decorado com folhagens e flores (às vezes também ovos pintados), no qual eram presas as pontas das fitas, com bastante atenção para não se embaralharem. Antes de começar a dança das fitas, a fogueira – representando os “Fogos de Beltane” – devia ser acesa ao lado do mastro, em local seguro para não prejudicar a dança, com as devidas evocações para o guardião do fogo e para os seres elementais, muito atuantes nesta data sagrada. Para a dança as pessoas seguram suas fitas estendidas e formam pares, depois seguem uma sequência específica: os homens (ou os números impares) avançam por baixo das fitas indo no sentido anti-horário, as mulheres (ou os números pares) passam as suas por cima indo no sentido horário; alternando-se o giro dos dançarinos as fitas se entrelaçam em uma bela e harmoniosa tessitura. O mastro pode ser deixado no mesmo lugar para fixar as energias por ele armazenadas, ou guardado com respeito para ser usado no ano seguinte. O casamento sagrado era um ponto importante nas celebrações e o casal formado pela Rainha e o Rei era escolhido antigamente apenas entre os sacerdotes, mas aos poucos foi sendo esquecido o papel do Rei e continuada a tradição apenas com a escolha da “Rainha de Maio” como a jovem mais bonita, apesar desta data simbolizar a união dos opostos em uma harmoniosa interação e complementação.

A origem do mastro como centro de celebrações era muito antiga, existindo em vários cultos xamânicos e tribais em que representava o Eixo ou a Árvore do Mundo, ao cujo redor giravam os diversos mundos sutis. No culto da deusa Cibele do início da primavera, um pinheiro representava o Seu amado Attis, que era envolto em panos de algodão e consagrado pelo sangue derramado pelos sacerdotes, lembrando a morte e reencenando o renascimento sazonal do deus. Neste ritual, o branco dos panos representava a morte, enquanto o vermelho do sangue trazia a vida, cores simbólicas que continuaram sendo preservadas nos rituais de Maio.

O primeiro dia de maio ainda é celebrado em vários países como um festival da primavera e como o Dia do Trabalho em alguns países. Em diversos lugares continua sendo usado o Mastro de Maio e a dança de fitas ao seu redor, mesmo que o significado da cerimônia ou da festa seja diferente. Por exemplo, nos Estados Unidos e na Inglaterra algumas escolas celebram a chegada da primavera com danças de fitas ao redor do mastro, em Irlanda as pessoas vão em procissão na antiga data de Beltane para círculos de menires buscando sua cura e ofertando flores, fitas e vinho. A dança das fitas e suas variações aparecem em alguns países latino americanos como Venezuela e Peru, supondo-se que ela fazia parte da tradição maia. No Brasil, em vários estados, grupos folclóricos a usam em festas populares ou religiosas como nas “Festas do Rosário” em Minas Gerais, na “Festa do Divino” em São Paulo, nas dança dos arcos e flores em Santa Catarina, onde se diversifica nas danças do ziguezague, trenzinho e feiticeira. No Rio Grande do Sul a dança de pares em forma de ciranda gira ao redor do mastro criando desenhos de trama, trança e rede de pescador.

Independentemente da tradição ou filiação religiosa, esta antiga data sagrada continua impressa na memória coletiva de inúmeros povos e representa um marco no giro da Roda do Ano, em que podem ser feitas purificações coletivas ao redor de uma fogueira, celebrando depois com danças circulares ao redor de um Mastro, real ou em miniatura. No dia seguinte, o início do mês será dedicado ao amor e à celebração das uniões, selando ou consagrando um relacionamento com as bênçãos dos princípios divinos, masculino e feminino, refletidos e representados pela sua contraparte humana.

 

  • Texto publicado no Jornal Deusa Viva em abril de 2010. Os arquivos de nosso antigo jornal estão acessíveis dentro do Blog em “Edições Anteriores”.
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